Bagagem: a casa do amanhã não se pode visitar | ArtRio 2024 – RJ

Curadoria para o Instituto Artistas Latinas

A CATECÚMENA

Se o que está prometido é a carne incorruptível,
é isso mesmo que eu quero, disse e acrescentou:
mais o sol numa tarde com tanajuras,
o vestido amarelo com desenhos semelhando urubus,
um par de asas em maio e imprescindível,
multiplicado ao infinito, o momento em que
palavra alguma serviu à perturbação do amor.
Assim quero “venha a nós o vosso reino”.
Os doutores da Lei, estranhados de fé tão ávida,
disseram delicadamente:
vamos olhar a possibilidade de uma nova exegese
deste texto. Assim fizeram.
Ela foi admitida; com reservas.

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR 

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas 
atravessa a noite, a madrugada, o dia, 
atravessou minha vida, virou só sentimento.

FRAGMENTO

Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou: 
não vai ser diferente da noite. 
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou paciente ao meio-dia: 
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela.

PRADO, Adélia. Bagagem. 20ª edição, revisada. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 44, 48 e 67.

Bagagem: soma das experiências e memórias que um corpo carrega ao longo da vida; identidade formada pelas origens, cultura e história pessoal de um indivíduo; depósito de vivências e emoções que moldam a jornada de cada ser. Por mais longe que vá, é impossível viajar sem o que és.

Os atarefados não veem, mas os artistas e poetas sim. Enquanto uns vagam distraídos, outros sintonizam uma orquestra silenciosa, afinando a mais transformadora melodia. Em conjunto, contribuem para a explosão da fragmentação, buscam fragilizar as estruturas da hegemonia e são agentes de construção de uma história polifônica. O que contemplamos na sua poesia — e arte — é a expansão das subjetividades.

“Bagagem: a casa do amanhã não se pode visitar” é embalada pela poesia da mineira Adélia Prado. O conjunto de sua obra amplia horizontes e desarticula barreiras linguísticas. Ao mirar no cotidiano trata das relações entre a religiosidade, a família e o cotidiano. Toda a sua produção bebe da literatura moderna, inspirada por escritores como João Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Helena Morley. 

Em entrevista para a sua tradutora ao idioma inglês, Ellen Doré Watson, Prado disse que “ela [a poesia] pousa nos lugares mais inusitados e inesperados. Quem sou eu para organizar o voo do poema? Eu sou um servo, um servo da poesia”. Este ano, em 2024, com 88 anos, Adélia Prado recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), e o Prêmio Camões, vinculado ao Ministério da Cultura (MinC) do Brasil e ao governo de Portugal.

De sua primeira publicação, o livro Bagagem (1976), trazemos três poemas para esta exposição, que nos conduzirão junto a reflexões a partir da imagem, além de trazer frescor para assuntos pertinentes ao contexto em que a escritora está inserida. Nas palavras de Prado, “a fé não pode recusar o que a poesia aceita, porque não há contradição entre fé e poesia. É o mesmo território”. Acompanhado o poema A Catecúmena, as artistas examinam suas próprias experiências e espiritualidades. Ao lado dos versos de Explicação de poesia sem ninguém pedir, apresentamos trabalhos que revivem memórias de infâncias e conexões ancestrais. E em Fragmento, bons ares são anunciados, expandindo os contornos das narrativas instituídas social e economicamente.

Essa congruência das linguagens recria ficções biográficas e apresenta realismos fantásticos, onde algo de urgente e visceral pulsa das telas, esculturas, fotografias, instalações e gravuras. O corpo é um campo de batalha e um santuário, revelando-se para além de um mero recipiente. Ao beber do “eu” coletivo, as obras humanizam palavras. Assim, contemplamos enseadas de territórios que não se limitam pelas fronteiras e se diluem na espuma do instante, habitando áreas onde o pensamento se torna tangível e o sentir se torna arte.

Ana Carla Soler e Francela Carrera

Coletiva com as artistas Alice Yura, Anita Ekman, Anny Lemos, Carol Ambrósio, Cleiri Cardoso, Dyana Santos, Katia Wille, María Villanueva, Lila Deva, Lui Trindade, Marilyn Boror Bor, Maria Macêdo, Mayeli Villalba, Medusa, Mery Horta, Natali Tubenchlak, Noel de Leon, Evna Moura, Val Souza, Sylvana Lobo e Thaís Iroko.

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